Cena 1
— “É aproximação, moça?”, me pergunta o vendedor.
— “Não, moço, é do jeito antigo mesmo, inserindo e digitando a senha”, respondo.
— “Ah, é mais seguro, dificulta a vida do ladrão, né”, ele complementa.
— “Sim, me protege do ladrão e de mim mesma”, digo.
Rimos todos, compra feita.
Cena 2
— “É aproximação, senhora?”, pergunta o rapaz.
— “Não, moço, vai ser no PIX, por favor”, sinalizo.
— “Ah, é bom pagar à vista, né”, ele complementa.
— “Sim, lembro que estou gastando e vejo o quanto ainda tenho”, digo.
Corta, diretora.
Essas cenas fazem parte do meu cotidiano. E, talvez do seu, com alguma frequência ou mesmo adaptações. Fato é: estamos sempre consumindo algo e fazendo pagamentos — e, por isso, esse assunto muito nos interessa.
Do lado de cá, a cena 1 é mais rara, pois, para o meu dia a dia, ela está associada ao uso do cartão de crédito. Salvo exceções, normalmente eu o utilizo para itens mais caros e menos frequentes do orçamento, dialogando com meu planejamento financeiro.
(Ah, Mari, mas você está perdendo a oportunidade de ganhar pontos, milhas e salas e zazzzz. Sim, talvez, eu esteja perdendo algo, mas fico feliz com a ideia de maior controle financeiro, esse para mim, hoje, é o maior ganho que poderia ter, gente. Cá pra nós, é o que vejo também na maioria das consultorias que ofereço, independentemente do holerite de quem está na minha frente. Já atendi gente ganhando de R$ 2 mil a R$ 70 mil por mês e a percepção é a mesma: gastamos mais - e pior, melhor dizendo, sem consciência - quando usamos o cartão de crédito. Um dia, numa roda de conversa, soltei a frase: prefiro ter a certeza de guardar dinheiro na conta do que ganhar milhas, ao ponderar o risco de, mesmo colocando uma quantidade de energia enorme nessa gestão de me beneficiar com prêmios indiretamente, ainda assim fracassar e comprometer meus potenciais de poupança e, eventualmente, meus planos. Mas, pelo amor, voltemos.)
No dia a dia, representado pela cena 2, sou adepta ao débito, que, para mim, foi otimizado pelo PIX, o queridinho do Brasil. Ele é seu amorzinho também? Tirando contextos em que manejar o celular seja perigoso (festas de rua) ou incerto (sem internet), sempre utilizo a forma de pagamento. Quando não, uso o cartão de débito do banco mesmo.
Para as duas circunstâncias, me sinto démodé, antiga, fora de moda.
Ah, risonhamente antiquada, não nego a você um certo prazer em me sentir di-fe-ren-to-na. Acho que nunca me senti, na verdade, tão alinhada à velhice meio entranhada em mim desde os primórdios de menina capricorniana. Agora, com um charme: eu estou usando isso com base nas ciências comportamentais.
Mas, Mari, o PIX é algo tão moderno, atual, inovador. Tu se sente meio fora de moda quando o usa? Oxe! Demais, gente. Você tem que ver a cara dos vendedores quando eu digo “vai ser no PIX”. Antes, me perguntam:
— É no crédito?
— Aproxima no cartão?
— Coloca o celular aqui perto que vai!
— É no relógio, senhora?
— “Não, não, vai ser PIX, e eu vou abrir aqui a conta, viu. Pode gerar o QR Code, por gentileza”, digo.
Me sinto quebrando todo um glamour (palavra velha também) que as facilidades tecnológicas me oferecem e que minha skin planejadora financeira poderia usufruir e encantar mais por aí. Tem charme — mais uma direto do baú —, não se pode negar.
É moderno demais a gente só encostar um pedacinho de plástico e plim pagar por algo, né? É o futuro, dizem. Não, já é o presente. Uma sensação de poder e riqueza tal como as notas do caixa do Banco Imobiliário nos dava por horas seguidas - ô jogo sem fim!
Eu costumo assistir a telejornais uma vez por dia, outro hábito dos antigos, e numa reportagem sobre o preço das coisas, uma mãe foi entrevistada com a filha pequena no braço. Uma das imagens feitas mostrava a mãe pagando a feira ao aproximar o braço com um relógio inteligente do dispositivo indicado pela operadora do caixa. A criança, para meu espanto, repetiu o movimento.
Temos a Cena 0, diretora.
Eu parei nesta imagem. E esse texto, na verdade, começou a existir para mim neste dia.
A mãe tinha em seu braço um relógio inteligente. A filha, não. Mas ligeiramente, como todas as crianças, já tinha entendido: eu pago/tenho/acesso coisas fazendo esse gesto, e, ao fazê-lo, recebo as coisinhas que escolhi/desejei.
Desde então fico pensando sobre como, cada vez mais, as formas de pagamento se tornam sedutoras justamente pela naturalidade que sugerem se simulando quase como “movimentos biologicamente calculados”. Aqui, um pouco de Chavinho misturado com Foucault, Agamben e Escola de Frankfurt, as always (acho viver em São Paulo me deu esse cacoete de meter umas expressões em inglês que hoje uso às vezes sem perceber, em outras, por deboche mesmo).
Reflito em voz alta:
Os corpos cada vez mais dóceis, atendendo ao que se espera do sujeito moderno em termos de utilidade econômica e obediência política, agora, mais fortemente, podem vivenciar mais símbolos de sucesso - e de adequação - ao consumir. Ao incorporar novas formas e movimentos, dando novo uso aos corpos, sente-se prazer não só pelo consumo, mas pela forma do consumo, que traduz um status pela forma. Tudo rápido, encantador, sofisticado - relógios com uma boa tecnologia NFC, incluindo o recurso de pagamentos, custam mais que um salário mínimo em nosso pobre país. Em um só movimento, em um só movimento (repito), tal como reproduzido, reproduzido (repito), pela menininha de dois anos no colo da mãe. Tudo como o mais simples estímulo-resposta, carente de atenção — a maior moeda do nosso tempo e, decerto, o maior objeto de interesse do capital, associadamente ao dinheiro.
Eu sigo muito pensativa sobre tudo isso e amaria esticar mais a prosa depois sobre o assunto. Agora, abandono meu devaneio e volto às cenas.
Se a Cena 0 me jogou trouxe até aqui, as 1 e 2, de certa maneira, me ajudaram (e ajudam) a cuidar melhor de mim e do meu dinheiro no dia a dia. Elas são contextos criados por mim para facilitar os resultados que desejo no meu dia a dia financeiro.
Todas as vezes em que se desenha um contexto para influenciar em um determinado resultado, fala-se de arquitetura de escolha. Basicamente, a forma como se projeta algo em termos de contextos vai facilitar ou dificultar o êxito de um determinado objetivo.
Quem pensou sobre isso não fui eu. O conceito da arquitetura de escolhas foi criado pelo professor de economia e de ciências comportamentais Richard Thaler, vencedor do prêmio Nobel de Economia de 2017, e pelo especialista Cass Sunstein. Eles explicaram a ideia no livro Nudge: Como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade.
No Brasil, a maior especialista no campo da economia comportamental/ psicologia econômica é a professora Vera Rita, com que tive o prazer de aprender um pouco do que sei, durante as aulas oferecidas pela Nossa, de Vívian Rodrigues e Eduardo Amuri, professores e colegas queridos demais, e que sabem demais sobre o tema, claro.
Se meu desejo é ter mais controle sobre os gastos no dia a dia, opto pelo uso no débito/ PIX, porque vejo necessariamente no momento da compra quanto disponho, quanto está saindo da conta e o que está ficando disponível para eu seguir consumindo. Ao ver o que me resta (alô semanada, quem é da consultoria sabe do que eu estou falando), eu já tenho, imediatamente, uma orientação sobre o que posso ou não no próximo instante. Nem toda limitação é ruim, gente.
Por outro lado, se eu sei que há intrinsecamente uma tendência a se gastar mais quando usamos cartão de crédito, pelas características deste (já escrevi sobre isso nesse texto aqui), mas eventualmente me valho dele para algumas compras, escolho pagar do jeitinho mais pré-histórico.
Eu abro a bolsa, pego o cartão, insiro na máquina, checo o valor, digito a senha e ainda pego o comprovante. Nossa, quantos passos! Sim, a ideia é tornar a experiência gostosinha que é comprar no crédito mais chatinha mesmo. Torná-la mais lenta, perceptível, embarreirada, digamos assim.
Não à toa, os autores usam os termos nudges e sludges no livro. Os nudges seriam empurrões usados para estimular um comportamento benéfico; os sludges, para influenciar de forma negativa, segurar o movimento, se assim posso traduzir.
O melhor dessa percepção de que os contextos influenciam nossas escolhas e, claro, nossos resultados, é que elas também são aplicáveis para além do dinheiro. Exemplos:
Preciso acordar às 4 horas da manhã para correr. Coloco o despertador e deixo longe da cama. Se ele fica perto, dou uma soneca e a preguiça pode me prejudicar. Se ele está longe, pulo da cama, digo a mim “que invenção!”, mas já vou à cozinha para passar um café;
Aqui eu me empurrei com o desenho de contexto feito. Deu pra ver?
Preciso fazer feira e estou com fome. Se não me alimento, certamente tenderei a colocar mais comidas no carrinho. Se como algo antes, gero uma barreira para o excesso de compras e para também o desconforto que é estar de barriga vazia vendo comidas por todos os lados.
Estou de dieta e vou sair com as amigas. Posso sugerir um restaurante que tenha opções mais adequadas à dieta, gerando uma barreira a um tipo de cardápio mais prejudicial aos resultados.
Os contextos de vida, vale dizer, influenciam a forma como usamos o dinheiro, para melhor ou para pior. A vida é uma teia e é difícil escapar do impacto sistêmico de uma decisão. Tudo está interconectado. Muito mais do que pensamos.
Se comemos melhor, é provável que durmamos melhor. Se estamos mais descansados, pode ser que percebamos coisas que não estamos enxergando no dia a dia: desde a beleza do amanhecer, ao som do vendedor de doce japonês que passa na rua de casa, ou mesmo a desnecessidade daquela danação de streamings que se assina. Talvez a gente lembre que tudo aumentou de um ano para o outro e que é preciso e minimamente justo reajustar o valor pelos serviços de faxina que contratamos semanalmente.
Fato é, gente: se contextos mais amplos de vida podem interferir no modo como gastamos dinheiro; o dinheiro também vai influenciar a nossa forma de vivenciar as outras esferas.
Se estou cansada, peço mais comida de aplicativo e talvez aperte minhas contas. Se tenho mais dinheiro, posso oferecer a mim e a quem amo momentos de descontração e isso vai criar memórias, proximidade, afeto entre as pessoas - aquilo que costumamos levar dessa vida.
No meio dessa imensa rede, a gente vai sempre pensar em que tipos de contextos e escolhas vão ficar de pé no dia a dia para a gente, indo e vindo, construir o bem viver. A regra é que não há regra. Em finanças, isso vale. No entanto, é correto que se diga, porque há evidências científicas, que há contextos mais ou menos facilitadores quando o assunto é dinheiro.
Que contextos em relação à grana estão mais disponíveis ao seu controle para você encenar, voltando ao nosso jogo de cena (saudades, Coutinho), a vida que faz sentido, que dá tranquilidade, alegria e esperança?
Para mim, digo a você, tem sido gostoso demais estar “fora de moda”.
Eu estou aqui completamente besta pelo texto. Não só pelo conteúdo, mas também pela forma como você escreve. Eu concordo com vc e tb sigo fora de moda, tem sido uma paz danada! Obrigada por tanto, nunca pare!
Quanta reflexão boa em um texto só! 💛